Crónica de Jorge C Ferreira | As pedras e o mar

Jorge C Ferreira

 

As pedras e o mar
por Jorge C Ferreira

 

As estátuas sem tempo. As pedras de todas as memórias. O lugar em que uma civilização começou. Os restos de uma biblioteca que nos fascina. Os corpos belos das mulheres e dos homens. Uma liberdade que vem de um tempo muito antigo.

É sobre pedras que nos construímos. Pedra a pedra. Bloco a bloco. Corpo a corpo. Os restos de um monumento único e uma música que ouvimos com prazer. Uma sensação única a crescer dentro de nós. Uma deusa antiga que nos vem visitar. Umas mãos que nos acariciam. A vontade de viver.

Um teatro que nos encanta. Um anfiteatro do belo. As luzes. Um silêncio e os actores que se entregam num palco que parece sempre pequeno perante tamanha beleza. Não sei quantas versões daquela peça foram levadas à cena. Sei que é sempre um espectáculo único. Algo que não queremos que acabe.

As palmas. Os espectadores em pé. Os actores curvados. Vê-se no seu ar um vislumbre de felicidade. Algumas lágrimas escorrem por rostos inflames. A apoteose final. Depois, a dificuldade de abandonar aquele lugar mágico. Uma magia que se entranha em nós. Uma noite, mais uma, em que vai ser difícil adormecer. A excitação da felicidade a invadir a mente que se recusa a descansar. A cama, a cabeceira almofadada, os cortinados abertos e um clarão de felicidade que chega até nós.

Espero pela hora do pequeno-almoço. Tomo um duche rápido e subo até ao último andar. Já é dia. Como as iguarias que me satisfazem e olho, de novo, para o que nos fascina. Bebo um café especial. Peço a uma amiga para me ler o futuro nas borras. Ela fala, fala, e eu nem oiço. Estou ainda, todo eu, na noite encantada. Desço para o quarto. Ponho a placa para não incomodarem, fecho os cortinados. Deito-me. Finalmente adormeço ainda ao som dos aplausos. Os actores curvam-se de novo. Tudo o resto será sonho, e sono. Será como dormir sobre nuvens e acreditar no que as pedras dizem.

Acordo e vou de novo até às pedras onde foi a famosa biblioteca. Subo pela última vez até às ruínas da história acontecida e por acontecer. Há um sonho que me acrescenta mais vida à vida que desconhecemos. Somos a pedra que se acrescenta à pedra. Somos a discussão iniciática.

Parto para a minha ilha. A ilha sempre nova. A ilha da dança do sol e da lua. A ilha dona de todas as ilhas. A viagem pelo mar refresca-me os sentidos. O sal que sinto na boca. As bocas salgadas. O deck e o banco de madeira que fiz meu. Minha eterna viagem. Minha viagem para sempre.

Passeio pelas ruas estreitas. Sento-me nas íngremes escadas. Vou ver os moinhos. Como frugalmente. Sempre pensei em ficar por aqui. Esperar pelo inevitável num lugar calmo. Sei que aqui alguém irá encontrar-me. Alguém irá dar notícia da minha presença. Para mim, só o mar e eu são quase suficientes. Um diálogo permanente que vamos mantendo e nos agrada. Assim nos entendemos. Companheiros para a vida.

Chegou a hora de regressar. Ainda não foi dessa vez que ali fiquei. Choro sempre que parto. Choro sempre que chego.

«Tu e as tuas paixões por essas terras. Olha que isto aqui também é bonito.»

Fala de Isaurinda.

«Eu sei. Mas é uma paixão que não me larga.»

Respondo.

«Eu sei. És assim. Nada a fazer.»

De novo Isaurinda e vai, um sorriso rasgado.

Jorge C Ferreira Março/2023(389)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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26 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | As pedras e o mar”

  1. Branca Maria Ruas

    Tu és Mar. És viagem. És o choro de quem parte. O choro de quem regressa. Mas és, ao mesmo tempo, Luz na partida e na chegada. Essa Luz que vem do sonho e que faz parte de ti e da tua escrita. As tuas palavras são carícias. Tal como o Mar que acaricia as pedras por onde passa e as deixa limpas, polidas e luminosas.
    Um abraço, Poeta!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria. Que palavras tão bonitas as que escreveste. São demasiado para mim. És uma leitora que apetece ter. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  2. maria fernanda morais aires gonçalves

    Tu és a pedra maior que Miguel Angelo transformou, e da pedra saiu Moisés. A escultura mais perfeita do homem jamais feita, talhada palavra a palavra. Meu amigo, Só que a pedra de Miguel não podia falar e tu Jorge, desencantas as letras e és o artista neo renascentista das letras e das palavras. Hoje a tua Obra Fala e é a isto eu chamo Arte. Parabéns!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado, Maria Fernanda. O que tu me dixes e de wue maneira. Não mereço. Tu és de uma Amiga de uma generosidade enorme. Muito grato por estares aqui. Abraço enorme

  3. Ferreira Jorge C

    Obrigado Conceição. Tão gratificante ter aqui as suas palavras. Como adorei! Temos obrigação de contar tudo o que vemos e sentimos. A minha gratidão pela sua presença. Abraço grande

  4. Manuela Moniz

    Emociona-me o teu amor às pedras e ao mar, querido Jorge. As tuas vivências, sentimentos e experiências tão marcantes.
    É um enorme prazer ler textos tão belos.
    Obrigada, meu Amigo e enorme Poeta.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Manuela. Eu é que me emicionei por ler o teu comentário e pela tua presença. Muito grato. Abraço grande

  5. Eulália Coutinho Pereira

    Crônica lindíssima. Memórias de viagens que acompanham uma vida. A imaginação que dá vida a uma civilização construída pedra a pedra. A beleza das imagens que nos leva a tempos antigos e desconhecidos. Fazem da história um mistério.
    O mar rodeia todo o cenário é leva-nos numa viagem de sonho.
    Senti por momentos que viajava através da história da civilização.
    Obrigada Amigo por poder fazer parte desta viagem fantástica.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Sempre belos os seus comentários. Qundo viajamos também percorremos a história. Em cada pedra um sinal. Em cada maré uma sinfonia. A minha gratidão pela sua presença. Abraço grande

  6. Maria Luiza Caetano Caetano

    “As pedras e o mar.”
    Um sonho lindo, só seu que connosco partilha.
    Lugares únicos que povoam a sua memória. Sonhos inesquecíveis, que só os poetas sabem contar. E o Jorge é um poeta de verdade e eu não sei dissertar, sobre a magia das suas palavras.
    Fico grata, por me dar o prazer de o ler. Para sempre, seja o mágico das palavras.
    Com ternura, o meu abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Sempre tão gratificante ler o que escreve. Sonhos que quero nossos e por isso escrevo. A minha imensa gratidão por ser minha leitora. Abraço enorme.

  7. Filomena Geraldes

    Somos as luas que nos visitaram. Os areais que percorremos . Os pés pisando um sal e um iodo. Quantas vezes,as fases do sol.
    as estações combalidas. o verão mesmo ali à porta. a mata tão verde que tem as mãos tintas de relva. o lago que não é dos cisnes.
    as gentes. que vamos somando à medida que chegam. escutamos os seus sons falados. as aguarelas com que nos pintam os dias.
    tu pintas os meus dias.
    o teatro semeado de magia, o sonho onde te deitas. a biblioteca que foi outrora. a ilha que navegas. estreitas as ruelas marcadas pelos teus passos. o vento que açoita os moinhos.
    e sobra o mar. esse com quem dialogas. o palco do teu sentir. a maré azul. as frias algas. o companheiro que rasura a solidão.
    somos as pedras. os caminhos. o nome de tudo o que escreves. do que nos segredas.
    somos o teu outro interlocutor.
    mas só tu nos pintas os dias.
    das cores de que são feitas as memórias.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Os teus comentários são poemas encantados. A tua presença neste espaço é um valor acrescentado enorme. Sabes do que falas. A minha gratidão pela tua presença neste espaço. Abraço forte

  8. José Luís Outono

    Partir e chegar … dois verbos que fazem parte do nosso sentir, nas mais variadas emoções em que rasgamos diariamente o calendário em vigor.
    Como gosto de partir , face aos teus convites e regressar num mar de reflexões, em cada parágrafo do teu empenho.
    O ontem e o hoje, tão pertos do nosso olhar, como rugas ou sorrisos do hoje nos sonhos da aventura dos tempos do passado mas sempre presentes, em vitaminas essenciais no esculpir do nosso viver.
    Como é bom mergulhar neste traço do teu partilhar amigo … e agradecer em segredo o nosso ler bem apelativo na batuta que “organizas” entre a folha branca do nascer do Sol , e o segredo mágico no brilho da Lua convidativa.
    Amigo … tão bom viajar por aqui!!!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luis, meu Amigo, Poeta. Estamos sempre a chegar e a partir mesmo quando estamos no nosso canto a escrever. As viagens são inevitáveis. A nossa cabeça não pára. É assim que a história acontece. Grato pela tua presença. Abraço grande

  9. Regina Conde

    O sentir de quem adora o mar. As lágrimas ao chegar e partir, as saudades patentes. As pedras, nosso património. A tua assinatura em cada emoção. Abraço, meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. De quantas lágrimas somos feitos? A emoção tão patente nos teus comentários. Pedras nossas que nos levam a momentos belos. Grato pela tua presença. Abraço enorme

  10. Lenea Bispo

    Nesta memória das pedras, a minha memória catapultou-me para uma biblioteca em ruínas. Em Efeso na Turquia. A Biblioteca de Celso, sofreu já alguma recuperação para que a sua fachada lhe permita olhar-nos com dignidade. Quantos livros albergou…manuscritos em pergaminho e outros. Quantas histórias aquelas pedras nos querem contar… Histórias aprendidas ao longo do tempo, na sua memória de pedra.
    Pedra sobre pedra…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lenea. Há sempre a ruína de uma biblioteca no nosso caminho. A história da escrita e dos livros. Pedras que sonham. Tudo porque amamos os livros. Muito grato por estares aqui. Abraço grande.

  11. Ivone Maria Pessoa Teles

    Gostei muito. És tu, as tuas partidas, as tuas chegadas. O amor pelos mares, pelas pedras. O amor pelos teus sonhos, pelas gentes, pela VIDA. ´Conheces? ÉS TU, assim, tal qual, o teu coração . Beijinhos abraçados.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Que belo o teu comentário. Tudo o que nossos olhos vêem e conseguimos armazenar torna-nos mais gente. Aprender sempre. Grato pela tua presença neste nosso espaço. Beijinhos

  12. Ivone Maria Pessoa Teles

    Muito bela esta crónica, meu querido Amigo. As tuas viagens, sonhos, encontros e desencontros. Amas as ” partidas ” e amas as ” chegadas”. És um nómada. O teu amor pelas terras, mares, pedras…… Voltarei aqui, mas desde já posso felicitar-te por ele. Beijinhos abraçados.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Chegar e partir, partir e chegar. A nossa eterna viagem. Os nossos eternos sonhos. Pedra sobre pedra vamos crescendo. Muito grato pela tua presença. Beijinho

  13. Clara Figueiredo

    Pedra a pedra…
    Dor a dor… até ao fim de nós!
    Saudades…tantas! Obrigada amigo Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Clara. Una alegria imensa ter aqui a sua voz. Pedra a pedra nos construímos e destruimos. Assim iremos até ao fim de tudo. Muito grato pela sua presença. Abraço grande

  14. conceição lima

    A tua crónica é um Convite sem direito a recusa…Obrigada, amigo! Adorei o teu texto tão cheio de olhares, memórias e sonhos!!Parabéns!!

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